sábado, 20 de março de 2021

LULISMO, COMOÇÃO NACIONAL, PERSEGUIÇÃO POLÍTICA E AS ELEIÇÕES DE 2022 (Daniel Marinho)


LULISMO, COMOÇÃO NACIONAL, PERSEGUIÇÃO POLÍTICA E AS ELEIÇÕES DE 2022

Possuímos a impressão real de que as eleições de 2018 não acabaram... O presidente eleito Jair Messias Bolsonaro nunca saiu do palanque. Por vários motivos, o que inclui a sua lógica necropolítica de que o discurso de crise e de vitimismo são eficazes para a manutenção de um percentual aceitável de popularidade entre os seus seguidores. Hoje esse percentual ainda é suficiente para levá-lo ao segundo turno. Enquanto isso, todas as outras forças políticas do país tentam articular um anti-bolsonarismo da mesma forma com a qual já construíram anteriormente um antipetismo, evidentemente guardando as devidas diferenças, mas o sentido deverá ser o mesmo se essas forças quiserem vencer Bolsonaro.

Em meio a essas constatações mínimas um episódio passou a dar cores novas no quadro situacional da política do país. Lula entra no jogo político eleitoral de 2022.

Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente da república foi preso, por decisão judicial em segunda instância, aos 73 anos de idade, e assim ficou durante 580 dias. O tempo passou exatos três anos, e já em casa ele acaba recebendo a notícia de que o julgamento não valia pelo fato de que o caso não poderia ter sido julgado onde foi. A partir de então uma onda de discursos, narrativas e percepções apaixonadas tomam conta do país. E por quê? Lula é uma das figuras mais emblemáticas e representativas da história política do Brasil democrático, e, além disso, ele encarna a representação dos discursos mais apaixonados, seja para adorá-lo ou para detratá-lo. Dificilmente encontraremos um brasileiro que não se apeteça com a figura de Lula, e certamente um desses brasileiros é o atual presidente Jair Messias Bolsonaro. Tudo mudou na parca mentalidade de Bolsonaro quando o julgamento foi considerado nulo e Lula potencialmente elegível.

Algumas interpretações rapsódias sobre a decisão do ministro Fachin:

1.        Sim, a decisão foi política. Certamente ninguém acredita que, após tanto tempo, o ministro tomou a decisão por que teria encontrado uma falha técnica no processo;

2.      Sérgio Moro estava prestes a ser designado como suspeito no processo de Lula, principalmente após as denúncias e evidências mostradas pela “vaza jato” onde ficou caracterizada a sua influência sobre os procuradores da força tarefa. Também considerando que as provas foram coletadas de forma ilegal. Ou seja, o que assistimos foi um jogo de cartas marcadas;

3.       E se “onde passa um boi passa uma boiada” essa decisão do ministro Fachin também abre a possibilidade de que todas as decisões da Lava Jato sejam consideradas nulas;

4.      E o que pareceu ser um jogo para livrar Lula na verdade, com a nulidade do processo, salvará Moro de ser investigado pela sua interferência no processo.

Finalmente temos uma ferida aberta. Ferida essa que todos sabem que existe... Do brasileiro mais humilde até o mais abastado, sabemos que a justiça no Brasil é feita conforme os contextos e interesses das classes que dominam as letras e dominam o jogo político. E mais, que as decisões estão sempre ligadas à interesses pessoais. Vamos nos lembrar da decisão do ministro Gilmar Mendes, maior debatedor da parcialidade de Sérgio Moro, quando a alguns anos atrás mandou soltar um empresário no Rio de Janeiro, cuja filha ele tinha sido padrinho de casamento[1]. Ou seja, realmente todas as peçonhas são venenosas.   

Obviamente que não existem garantias de como as eleições de 2022 vão terminar, mas é claro que teremos um Bolsonaro muito mais desgastado se Lula estiver no pleito.

O discurso inflamado do líder histórico do PT, na sede dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo deve ter sido visto por Jair Bolsonaro debaixo da cama, semelhante à quando éramos crianças e estávamos com medo do bicho papão. Pelo menos foi o que pareceu, em seu primeiro pronunciamento após a libertação do ex-presidente. Todos sabiam que era o Bolsonaro, mas ele realmente estava diferente... Até a decoração do cenário mudou um pouco com o acréscimo de um globo terrestre. E olhem que a live costumeira das quintas-feiras de Bolsonaro é um verdadeiro circo dos horrores, em que frequentemente ele vomita todas as suas improbidades. Inclusive acreditamos que um dia se fará necessário que a imprensa brasileira seja vigilante e corajosa o suficiente, da mesma forma que a americana foi ao termino do governo Trump. Praticamente todas as vezes que o presidente americano mentia descaradamente, ou a sua fala era cortada ou o “mentirometro” era ligado e a população era informada que aquelas sentenças proferidas por ele eram falsas.  

Um dos problemas marcantes de uma provável disputa entre Bolsonaro e Lula, além delas reforçarem nosso maniqueísmo político é que ela está pautada na ligação afetiva que as pessoas têm à lideres carismáticos. Resguardando suas devidas diferenças, Lula e Bolsonaro trazem à pauta política do país um apelo forte às emoções e a sentimentos que estão relacionados a construção de um patriarcado político nacional. Em um país que precisa urgentemente de saídas conscientes, planejadas e responsáveis para problemas complexos o resultado desse maniqueísmo é sempre o mesmo: ou amor devotado ou ódio ressentido. É claro que Bolsonaro prefere mil vezes encarar Haddad e até mesmo Ciro Gomes, que possuem um perfil bastante acadêmico, portanto, um tanto quanto afastados da linguagem popular das massas, do que enfrentar Lula. Para o enfrentamento a Haddad e Ciro a saída simples para Bolsonaro seria a de fugir do debate político direto, pois realmente não teria chances, mas contra Lula, certamente a disputa seria no corpo a corpo e como em todo ringe de UFC o sague jorraria...        

Pensemos então nas atribuições mecânicas dos três poderes da nossa nação, e que hoje estão enferrujados pela crise em que estamos vivendo com o corona vírus. A crise agravada com a briga política entre os poderes, em âmbito nacional, estadual e municipal e liderada pelo olho do furacão que é o presidente da república. Em tese o poder legislativo seria o mais político, cabendo ser o representante dos vários diálogos regionais em um debate público amplo. Salientando que o seu principal problema é a corrupção advinda, inclusive, do fisiologismo e interesses de grupos específicos que são patrocinadores de políticos. O poder executivo fica literalmente no meio, sendo político também, mas cabendo-lhe a necessidade de ser técnico, ou seja, tendo a responsabilidade de operacionalizar as políticas públicas em todos os seus âmbitos. Precisa cumprir as leis e o orçamento em equidade com as necessidades da população. Já o poder judiciário deveria ser o menos político dos três, mesmo que esteja sendo, ultimamente, uma das vozes mais ativas de contensão dos arroubos golpistas do presidente Bolsonaro. Mas por estar sendo tão político, o Judiciário acaba se configurando como uma das fontes de instabilidade mais claras da nossa democracia. Temos que viver com mais essa tensão diariamente. Não é a toa que talvez sejamos a primeira geração de brasileiros que sabe os nomes de vários ministros do supremo, mas não sabe toda a escalação da seleção brasileira.  

De todas as formas o Supremo Tribunal Federal está errado. Pensemos. Se a decisão de Fachin estiver correta, ou seja, de que o processo de Lula deve ser anulado e que tudo volte ao ponto de partida, ela serviu à época para que Sérgio Moro retirasse o principal opositor de Bolsonaro do páreo eleitoral. Com o agravo de que Sérgio Moro tornou-se ministro da justiça posteriormente, temos que nos lembrar deste fato. Uma interferência inadmissível no processo democrático.  Mas se a decisão do ministro do supremo estiver errada ela recai sobre outro problema sério, que seria o de colocar no páreo eleitoral de 2022 um candidato ilegal.

Enquanto esse teatro shakespeariano se arrasta, milhares de compatriotas morrem crucificados pelo corona vírus, e com a fúria de um algoz, Bolsonaro passa outra vez a ter uma cortina de fumaça eficaz. Ameaçado pela concorrência eleitoral de Lula, o presidente e seus asseclas partem para a perseguição judicial dos seus opositores mais midiáticos... Nesse momento os alvos são o youtuber Felipe Neto, um professor universitário do Rio Grande do Sul e o eterno pré-candidato a presidência Ciro Gomes. Cheirinho de golpe no ar outra vez.

Daniel Marinho é professor de História, assessor pedagógico e rapsodo dos sertões.  


 

segunda-feira, 15 de março de 2021

GENOCÍDIO BRASILEIRO: AS CORTINAS DE FUMAÇA E O MESSIAS DO MIMIMI (Daniel Marinho)

 



O Brasil é realmente um país de contradições e ressignificações bastante singulares... No contexto geral das nossas experiências históricas, podemos observar várias “jabuticabas” (termo popularmente utilizado quando nos referimos a realidades vividas apenas pelos brasileiros). Pois bem, vamos fazer um exercício de futurologia e dizer que, a palavra messias está ganhando um novo sentido entre nós. Vejamos: Pela cultura judaico/cristã o messias seria aquele que traria a salvação e a libertação do povo de Deus, estabelecendo uma nova ordem social, de paz, justiça e liberdade. Já na atual cultura brasileira do maniqueísmo político e do caos sobrevivido pelo nosso povo, por causa de todos os fatores acrescidos pela pandemia do corona vírus, o nosso messias está mais próximo de carregar o significado de uma das trombetas do apocalipse, a do genocídio, do que necessariamente trazer o significado da libertação.

Se formos analisar de forma fria, e até mesmo sem pensar em partidarismos (o que seria impossível) o que poderíamos falar do líder de uma nação que, em meio à propagação de uma verdadeira peste egípcia, que fulminou até meados do mês de março, 270.655 mil compatriotas (mais de um quarto de milhão e crescendo...), diz que tudo se trata de mimimi e de frescura por parte do povo que lhe elegeu?

O certo, por outro ponto de vista, é que dentro dessa lógica, Bolsonaro não enganou ninguém. Desde quando era parlamentar pelo Rio de Janeiro, e desde quando sua ascensão irresistível começou a se dar, através de programas de TV de segunda e terceira categorias que ele deixava transparente a sua adesão a um conservadorismo viciado em uma necropolítica[1], que tem como alicerce a pauta maniqueísta do “eles contra o nós” além do apelo à teologia da prosperidade que se alinha em um neopentecostalismo televisivo. Tudo isso em nome de um falso moralismo da construção arquetípica da família tradicional brasileira.

Tal construção é tão apelativa que acabou conquistando eleitores apaixonados, defensores das mais variadas pautas, entre eles:

1.   Os saudosistas da ditadura militar e sua alergia ao comunismo alegórico da guerra fria;

2.   Os descontentes pela ascensão consumista das classes C, D e E;

3.   Os negacionistas da ciência cartesiana;

4.   Os ávidos pela justiça feita como vendeta nos patíbulos das praças públicas e que sentem certo fetiche pela morte de jovens negros e pobres;

5.   Os revoltados com as inclinações políticas da grande imprensa;

6.   Os incomodados pela repercussão das pautas de inclusão social e discursiva de movimentos sociais organizados e principalmente...;

7.   Os descontentes com o histórico recente das atuações dos governos do PT.

Um episódio ilustrativo disto que estamos dizendo, a necropolítica, foi a fala de Jair Bolsonaro em um encontro onde, por mais uma vez, enquanto candidato a presidência da república ele era indagado sobre suas qualificações e conhecimentos prévios para ocupar tal cargo. Na oportunidade ele vomitou a seguinte pérola: “... minha especialidade é matar!”[2].

Sabemos que existe um esforço gigantesco da mídia bolsonarista e dos adeptos do presidente para desdizer, ou refazer, ou recalcular tudo que ele declara. Isso com a intenção de reconstruir absolutamente toda a lógica. Essa inversão de valores faz parte da argumentação central da necropolitica, já que a justificação da morte por si só não se bastaria. O esforço do discurso de defesa do “mito” é enorme. Além de ser particularmente revoltante e cansativo, pois defender os discursos de Bolsonaro é a demonstração real de que, de alguma forma o nosso processo civilizatório errou, a nossa educação realmente não alcançou seus objetivos da promoção dos discursos e cosmovisões da ciência, da cidadania e da democracia.

O presidente Jair Bolsonaro é perito em administrar a tática do discurso “dois passos para frente e um passo para trás”. Ou seja, invariavelmente ele solta um discurso forte de grande apelo, causando uma fúria comovente da parte dos seus opositores e uma alegria redentora e acolhedora da parte dos seus correligionários. Depois que todo salseiro está armado e que os grupos antagônicos estão se degladiando nas arenas das redes sociais em avalanches de memes de internet e vídeos de Whatsapp dos tios do churrasco, ele no final das contas passa a dizer que não foi bem assim que ele quis dizer. Mas no final das contas, após deixar sempre um rastro de comoção, furor e revolta da opinião pública, ele acaba ganhando espaço. E quando ele ganha espaço o estrago está feito sempre. Temos, inclusive, a plena certeza de que ele compreende bem os efeitos nocivos das suas falas. Mas tudo isso tem suas razões, e a principal é sempre lançar uma cortina de fumaça sobre as razões reais e efetivamente mais importantes do seu desgoverno.

Para exemplificar a questão acima vamos lembrar o carnaval de 2019. Naquele momento as denúncias das “rachadinhas” contra o filho do presidente estavam na pauta além, claro, da relação delas com a atuação do amigo da família presidencial – Fabrício Queiroz... O apelo a esse momento desembocou, dentre outras coisas, em marchas de carnaval e, posteriormente na interferência óbvia do presidente na superintendência fluminense da polícia federal. O atual superintendente é inclusive amigo íntimo da família e ao mesmo tempo potencial responsável pelas investigações do caso. Em meio à tempestade política que já estava se abatendo sobre o governo, Bolsonaro lança mão de uma cortina de fumaça que durou um bom tempo. A crítica ao carnaval, maior festa popular do país, onde o mandatário da nação, travestido de arauto da moralidade pergunta aos sete ventos brasileiros após denunciar um vídeo em que um homem, em meio a folia de Momo, urina no outro: O que é golden shower? A cortina de fumaça parecia boba, mas a conversa do golden shower ecoou como um apito de cachorro sobre a turba bolsonarista, que é expert em fazer crescer o fermento das loucuras ditas pelo “mito”, e acabou rivalizando, na opinião pública, com a verdadeira questão política do país, ou seja, a interferência do presidente na polícia federal para a proteção descarada do filho.

Pois bem, possuímos a impressão real de que a estrutura discursiva de Bolsonaro tem como principal intenção esconder as suas falhas enquanto governante. Enquanto o presidente acusa o seu próprio povo de fraqueza moral e medo diante da morte, ele esconde o fato de ter negado, em agosto, a oferta de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer Biontech. Doses essas que imunizariam 35 milhões de brasileiros no início do ano de 2021. Pensemos com carinho, munidos da revolta necessária e saudades daquilo que não vivemos, no número de brasileiros que poderiam ter sido salvos se já estivessem imunizados desde então. E precisamos também lembrar, de forma civil e vigilante que, o milagre da charlatanice da cloroquina e de um suposto tratamento precoce (principais cortinas de fumaça do período da pandemia) ainda custa a tontura perceptiva da população sobre a pandemia e milhões gastos com um remédio que não faz efeito. Além de termos em tela a cumplicidade interesseira de militares – nossos atuais vendilhões do templo e atuais beneficiados da mamata que foram responsáveis pela produção do nosso elixir mágico.

Outra cortina de fumaça que chama muito atenção é o discurso adolescente de que a culpa dos direcionamentos da pandemia é sempre de prefeitos e governadores. E é claro que não descartamos a corresponsabilidade destes, mas a sua insistência chantagista nesse discurso ainda lhe acrescenta, para os seus admiradores, um alento falso de que o presidente não trabalha por que os outros não deixam. Precisamos lembrar que a sentença do STF a respeito das deliberações e rumos do combate à pandemia deveria seguir o princípio básico constitucional, que é o pacto federativo, portanto, sob a égide da liderança do governo em Brasília, todos possuem corresponsabilidade e potencialmente culpa.

Além do escândalo moral que carregam e do apelo midiático que elas compõem, as sentenças bolsonaristas contribuem para a manutenção do caos sanitário, político e econômico do país. Hoje, e de forma inédita, o Brasil é um pária internacional e um perigo sanitário no mundo inteiro, o que pode nos custar um isolamento medieval. E estamos convencidos de que, quanto mais ele investe nesse caos, e na desorganização perceptiva da nossa população mais o genocídio brasileiro se torna real à proporção em que os mortos são empilhados, e de forma estranha, mais estabilidade para a manutenção do seu cargo lhe dá. Por isso que insistimos que o governo de Jair Messias Bolsonaro é, além de outras adjetivações, genocida. 

Daniel Marinho é professor de História, assessor pedagógico e rapsodo dos sertões.



[1] Se fala de necropolítica o uso de poder social e político para ditar como determinadas pessoas e/ou grupos sociais devem continuar vivendo ou morrer. (Mbembe, Achille. On the Postcolony, 2003).

[2] Em visita a Porto Alegre, ainda enquanto deputado federal, onde após ser recebido por simpatizantes em um evento empresarial declamou a frase dita. No momento ele estava respondendo um jornalista que lhe indagou a respeito dos projetos que já tinha aprovado enquanto deputado. Ele se referiu a pílula do câncer e disse que não sabia se ela realmente curava ou não, pois sua especialidade seria outra, a qual já nos referimos. A tal pílula conteria a substância fosfoetanolamina.

sábado, 13 de março de 2021

A RELAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO COM AS MANIFESTAÇÕES POPULARES: UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE FORTALECIMENTO DAS MILÍCIAS (Lucas Martírio de Araújo)


 

Se quisermos entender a força das milícias no Brasil e principalmente no Rio de janeiro, precisamos compreender em alguma medida o papel fundamental da ditadura militar e da instrumentalização das manifestações populares nesse processo. Dos países latino-americanos que sofreram golpes militares no século XX, o Brasil está entre os que se mostraram incapazes de condenar os agentes do estado das forças armadas, quanto das forças policiais, pelos crimes cometidos contra a humanidade.

 Isso expressa o papel protagonista e dominante que o exército e as forças armadas foram acumulando desde o final do século XIX com a guerra do Paraguai, como também em Canudos, onde passou a ser uma instituição que participava ativamente da vida política brasileira e uma Instituição que se envolvia nos debates públicos da sociedade brasileira. No seu quadro de praças, por exemplo, as reivindicações abolicionistas e de cunho popular. Já nos postos de oficiais e alto escalão os traquejos e formulações de golpes e alianças com as oligarquias que permitisse a garantia de ambos privilégios, sendo a proclamação da república o resultado de um golpe articulado nessa direção.

 Os anos da ditadura militar no Brasil, tal como, marcaram um processo de aprofundamento das políticas econômicas capitalistas no ocidente, da subserviência aos EUA, da condescendência com o crime organizado paralelo ao estado e, claro, a participação da ditadura em todos os níveis de corrupção e do crime organizado. Na obra Os porões da contravenção (JUPIARA e OCTAVIO, 2015), por exemplo, se observa a participação ativa de chefes do exército, da polícia civil e de outros agentes durante a ditadura onde se utilizavam de seus lugares de poder para estabelecer suas relações com o contrabando, a contravenção, o suborno, a tortura e o extermínio, tudo a serviço dos grandes bicheiros e posteriormente ao tráfico de armas e drogas.

 É nessa direção e por dentro dos equipamentos do estado brasileiro que vão se estruturando as corporações do crime organizado, tendo um papel protagonista nas comunidades e favelas fluminenses. É também na ausência do papel do estado em muitas regiões que esses grupos vão se apropriando das demandas da população marginalizada e de suas tradições e expressões culturais como o futebol, as festas, a segurança, os bailes, o samba. Essas organizações criminosas paralelas ao estado foram aparelhando esses espaços e se imbricando nesses cotidianos.

O desenvolvimento das escolas de samba do Rio de Janeiro, por exemplo, está totalmente atrelado a relação com os bicheiros e em seguida com os milicianos que se formavam a partir desses relacionamentos e com a profissionalização do crime organizado. É o exemplo de Mocidade Independente de Padre Miguel com Castor de Andrade, da Portela de Carlinhos Maracanã, da Beija-Flor de Anísio Abraão, todos condenados por formação de quadrilha e que possuíam em sua retaguarda capangas militares ou ex-militares, entre eles suspeitos de assassinatos e sequestros.

No caso da Vila Isabel, tal como, foi presidida por um ex-capitão da ditadura militar acusado de tortura durante o regime, o Capitão Guimarães, ex DOI-CODI. Esses são os personagens que fortaleceram e fortalece a vida cultural de regiões historicamente abandonadas pelo estado, enriquecendo nas suas vidas privadas e construindo suas vidas públicas e de poder como uma espécie de herói local que fala a linguagem do povo, que defende e dirige algumas de suas reivindicações populares, que parece compreender o que o povo precisa e que além de garantir em alguma medida o direito ao seus costumes, contribuem para o sucesso da principal expressão popular brasileira, o carnaval. 

 Mas essas organizações não se restringem ao espaço político das favelas e periferias. Sua inserção se dá também desde os blocos carnavalescos das periferias, do controle das escolas de samba com a criação da liga independente, do controle de clubes de futebol menores como o Bangu e Madureira até chegar aos grandes times de futebol do Rio de Janeiro, como o caso do Botafogo de 1991 e 1992 presidido por Emil Pinheiro, condenado à época por formação de quadrilha. Ou, ainda, o Botafogo de 2002 que entregou a diretoria de futebol para o também condenado por formação de quadrilha Pacheco Drummond.

 Nesses passos essas organizações vão se transformando e se aperfeiçoando. Por um lado, adota em grande parte agentes órfãos da ditadura militar que vinham sendo deixados de lado com o fim do regime, passando também a integrar especialidades de caça, tortura e táticas militares aprendidas durante o período militar, para dentro das organizações do crime que vão dominando as regiões da cidade e do estado. Também compreendem a necessidade de se adaptar às mudanças com a constituição de 1988 e de continuar se envolvendo na política nacional. Movimento que se expressou no financiamento da campanha do alagoano Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto popular no pós-ditadura. Que tinha como principal bandeira de campanha a suposta caça aos marajás e corruptos.

É nessa dinâmica que as milícias e o crime organizado no Rio de Janeiro vão se perpetuando na política nacional e num movimento quase dialético se firma com o apoio popular, movimento que parece ser muito incompreendido por parte de teóricos e organizações políticas no Brasil, que numa ação quase repetitiva acaba englobando essas populações em categorias e caixinhas bem definidas e esquecendo, quase propositalmente, que as relações entre o povo e suas manifestações mobilizam afetos e carregam uma leva de outras questões.

A maneira, por exemplo, como a categorização das organizações criminosas é feita ainda parece muito pouco atenta às suas particularidades. Um dos erros é considerar estes grupos como grupos fascistas. Além do anacronismo há um erro de compreensão da sua formação, no sentido da coisa, essas organizações possuem respaldo popular, e seus líderes não conquistam esse respaldo através do ódio de classe, pelo debate moral ou pela ignorância.

Ao tempo que não apoiam ou financiam apenas políticos de direita, a exemplo da lista encontrada na casa do sobrinho do bicheiro Ailton Guimarães, o capitão Guimarães, com nomes de políticos que receberam dinheiro em 2001 e 2002, ente os nomes está o da ex-governadora Benedita da Silva, do maior partido de esquerda da América Latina que nasceu da luta democrática na década de 1980, o Partido dos Trabalhadores. Igualmente essas organizações financiam campanhas de partidos de esquerda, como exemplo novamente o PT, fora do estado do Rio de janeiro, tal qual o caso do condenado por formação de quadrilha, Carlinhos Cachoeira que foi flagrado em vídeo negociando sua ajuda ao prefeito de Palmas, Raul Filho, em 2012.

Mesmo compreendendo o carnaval como uma expressão política, aqui há de distingui-lo de uma ideia politiqueira tradicional. O respaldo das lideranças do crime parece ser muito mais obtido pelo campo das paixões, afetos e necessidades. São comunidades e favelas forjadas na dinâmica de um estado ausente e na presença cotidiana de poderes paralelos agindo por vezes coercitivamente ou não, com a ausência do debate político tradicional e das disputas ideológicas.

Em O corpo encantado das ruas, 2020, o historiador e professor Luiz Simas aborda as ruas como espaço de disputa política onde há das coisas mais sagradas: as trocas, os encontros e a construção de sujeitos históricos, o povo. O carnaval representado pelos blocos, escolas, bailes eram e continuam sendo maneiras de ocupar as ruas e “inventar a vida no precário”, é o dar a vida a quem está morrendo ou a quem tem quase nada. Nesse sentido o carnaval é movimento de sentir-se vivo, tão essencial como a água e o ar.

A relação do carnaval com o Rio de Janeiro nem sempre foi “amorosa” como ele cita, e naturalmente isto serve ao Brasil. Os poderosos e o estado brasileiro cansou de históricas incursões contra o carnaval e tudo que expressa heranças africanas, e nesse caminho muitas vezes os contraventores e criminosos foram aqueles que se aproximaram e se apropriaram dessas manifestações. Falar no povo fluminense, por exemplo, é falar, entre outras coisas, sobre o jogo do bicho e sobre o Samba e como eles se relacionam com os poderes.

  As milícias que se consolidam no Rio de Janeiro e no país a partir dos bicheiros, contraventores e criminosos fardados ou não, têm em particular algo muito comum: suas disputas pela conquista do poder e por sua manutenção não é sobre briga ou apoio político entre esquerda e direita, é sobre quem está disposto ou não a garantir sua perpetuação no tempo. Quem consegue legitimar esses poderes e quem consegue articular a congregação entre o crime organizado e o estado brasileiro, pois eles são inseparáveis.

Nesse sentido, suas articulações continuam e se desenvolvem. O assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, por exemplo, marca uma nova etapa do crime organizado no Rio e no Brasil. Ferrenha opositora à existência das milícias, ela foi rastreada e assassinada, bem ao modus, tática e estratégia militar, sua morte e impunidade que já passam dos mil dias simboliza que o crime organizado continua na ordem do dia. A morte de Marielle, uma política eleita pelo voto popular em pleno século XXI, pode ser a primeira evidência desse novo movimento das milícias e o seu grau de poder no país, uma outra evidência, inegavelmente, foram as eleições de 2018 que levaram as instâncias máximas do estado, políticos historicamente ligados as milicias, contraventores, agentes militares e civis que historicamente estiveram ligados ao submundo do crime, organizado ou não.

 

 

REFERÊNCIAS:

BETIM, Felipe.  “Lógica de usar torturadores da ditadura no crime foi usada nas milícias”. Jornal El País Brasil. São Paulo, 2019. Disponível em: <https://brasil-elpais-com.cdn.ampproject.org/v/s/brasil.elpais.com/brasil/2019/03/29/politica/1553885098_115676.html?amp_js_v=a6&amp_gsa=1&outputType=amp&usqp=mq331AQHKAFQArABIA%3D%3D#aoh=16134945249126&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&amp_tf=Fonte%3A%20%251%24s&ampshare=https%3A%2F%2Fbrasil.elpais.com%2Fbrasil%2F2019%2F03%2F29%2Fpolitica%2F1553885098_115676.html>. Acesso em: 18 fev. 2021.

DEMIER, Felipe. Milícia e fascismo: um breve comentário. Jornal Esquerda Online. 2018. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2018/12/16/milicia-e-fascismo-um-breve-comentario/> Acesso em: 18 fev. 2021.

JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os Porões da Contravenção. Editora Record, 2015.

JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Ex-capitão do bope promoveu aliança entre milicianos e bicheiros. Jornal Época. 2020. Disponível em: <https://epoca.globo.com/rio/ex-capitao-do-bope-promoveu-alianca-entre-milicianos-bicheiros-24275879 > Acesso em: 18 fev. 2021.

RANGEL, Sérgio. Bicheiro assume hoje futebol do Botafogo. Jornal Folha de São Paulo ESPORTE. São Paulo, 2002. Disponível em:  <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk2204200223.htm> Acesso em: 18 fev. 2021.

SÁ, Xico. Bicheiros não escolhem partidos. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 1994.  Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/17/brasil/33.html> Acesso em: 18 fev. 2021.

SIMAS, Luiz. O Corpo encantado das Ruas. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2020.

Políticos do Rio receberam dinheiro de bicheiros, diz PF. Jornal Congresso em Foco. [s.i.]. 2007. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/politicos-do-rio-receberam-dinheiro-de-bicheiros-diz-pf/> Acesso em: 16 fev. 2021.

Vídeo mostra prefeito de Palmas negociando com Cachoeira. Jornal G1. [s.i.]. 2012. Diponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/07/video-mostra-prefeito-de-palmas-negociando-com-cachoeira.html>  Acesso em: 13 mar. 2021.

Documentário: Doutor Castor. Produção: Globoplay; Direção: Marco Antônio Araújo. 2021. Rio de Janeiro: Globo Filmes. Acesso em fev. 2021.

 


sexta-feira, 12 de março de 2021

O CORINGA, A CRÍTICA SOCIAL E O ANTI HEROÍSMO

 


Nunca fui fã de filmes de super-heróis. Desde adolescente, e antes mesmo disso, eles possuem um tom pastel, adaptado às inocências dos adolescentes e crianças e revelam que os roteiristas podem ter serviços muito simples. Normalmente seguem a mesma direção da apoteose do mocinho e construção de uma simbologia ideal para seus expectadores. Por essas razões, e pelo sono intrépido que me toma quando não me interesso por algo, passei bom tempo negando assistir a última versão do CORINGA – personagem que mistura o ar jocoso com uma espécie de vendeta aparentemente sem sentido. O tempo passou e finalmente me rendi à referência da quinta pessoa que me alertou sobre a qualidade do filme: “assista! Não é filme de herói.... Você vai gostar! ” – Assisti...

Tratou-se, enfim, de uma experiência singular.... Um filme esplêndido.... Ao final das contas me senti arrebatado pela construção da narrativa da personagem Coringa sendo interpretado de forma singular pelo ator Joaquim Phoenix. Uma verdadeira crítica social à violência, ao desenvolvimento da relação do indivíduo com a sociedade, à indústria do entretenimento, à formação e desenvolvimento da luta de classes, enfim o autor conseguiu tudo isso com doses cavalares de tensão e cenas que na verdade descobríamos no final tratarem-se de alucinações.

Coringa é cometido de uma doença mental em que não consegue controlar o próprio riso. São muitas as cenas dos risos impróprios e o close da câmera na feição/interpretação do ator onde ele alterna o riso frouxo com o choro desvalido. Inclusive na ambientação inicial de Gotham City o Coringa está frente ao espelho forçando o sorriso icônico – o detalhe perturbador é que junto ao sorriso desce uma lágrima que carrega bastante angústia. Esse enigma metafórico percorre todo o filme, deixando os espectadores com uma certeza, que era a de que ele pertencia a uma espécie de mundo e percepção paralelos. Para tanto, os remédios que toma trazem para ele um equilíbrio distante, mas constante ao ponto de poder tratar sua mãe e manter um emprego como palhaço. Coringa é um sujeito fraco, palhaço fracassado – enfim, o estereótipo do homem comum que embora medíocre possui algumas aspirações. As principais são ser humorista e participar de um programa de TV muito popular. No mais, pelo dito o Coringa possui ambições próximas as da bolha das redes sociais. Nos momentos de delírio, quando se via participando do programa ou de frente ao público a percepção que tive era muito próxima ao teatro coletivo das redes sociais em que cada um de nós mostra parte da nossa personalidade hedônica e megalomaníaca. Não seria um desvio/padrão? As nossas máscaras? Da necessidade de mostrar-se como corpo, como algo interessante aos outros e até mesmo pertencente de ideias modernas? O real, os afetos e as relações de carne e osso seriam bem mais difíceis de se encarar.

Na tensão criada entre o ideal imagético e pitoresco do mundo paralelo do humor e a agonia de uma vida triste e decrepita a esquizofrenia se estabelece, e mesmo que o Coringa recorra insistentemente ao tratamento, quando é abandonado pelo estado, essas percepções se confundem de uma forma que tenho certeza que, como eu, alguns espectadores chegam a ter pena da personagem.

A sacada final, que me chamou também a atenção foi a extensão que os seus atos passaram a tomar. O ato do Coringa matar os três homens que estavam assediando uma mulher no metrô toma proporções políticas, incidindo em discursos antagônicos entre conservadores dos preceitos das famílias de “bem” – abastados e o símbolo da turba de palhaços que reivindicam justiça social impulsionados pelo fato. Os discursos do pai do Batman são bem parecidos com parte da narrativa conservadora brasileira e mundial. A partir desse momento, e das mortes que ainda é responsável durante o filme (inclusive a da própria mãe) abre-se outro palco para o Coringa que, antes perdedor e desvalido passa a ter seu desfecho apoteótico no talk show tão sonhado e nas ruas em protestos que nem imaginava ser o mito fundador...  As realidades passam a se confundir mais uma vez, desvelando um monstro para a narrativa do filme e uma provocação bastante atual para nós. Quatro estrelas e meia na minha humilde opinião!

 

 

  

ALGUNS DESAFIOS PARA O ACOMPANHAMENTO PEDAGÓGICO DAS ESCOLAS DA REDE ESTADUAL DE ALAGOAS.

 


Nessa última semana, estivemos reunidos durante dois dias com gerentes regionais, chefes de rede e técnicos pedagógicos. Alguns desses últimos ganharam o apelido, que advogo que se torne uma alcunha, de elos pedagógicos. A denominação me parece justa, já que, além de professores, esses técnicos pedagógicos desempenham um trabalho árduo em suas regionais com o objetivo de realizar o acompanhamento pedagógico das escolas. A despeito de todo o empenho, consideramos que alguns pontos e procedimentos precisam ser repensados e, por consequência, mudados. Daí, nesses dois dias termos convidados tantos confrades com a intenção de apresentar-lhes as novas/antigas ideias para o acompanhamento pedagógico. Novas/antigas justificasse, já que, para os momentos de mudanças, tendemos a fracassar, quanto mais acharmos que as experiências anteriores não tenham muito a nos dizer. Elas inclusive, têm a nos dizer na medida em que vários de seus elementos são postos a prova, interrogados e finalmente descartados ou aproveitados, como produtores de uma síntese. Então, chegamos à conclusão de que era necessário analisar quais os formatos com os quais o acompanhamento pedagógico sempre aconteceu e realizar uma crítica desse processo. Feito esse primeiro percurso, a intenção passou a ser o estabelecimento dos princípios do acompanhamento pedagógico para as escolas da rede estadual de ensino.

Algumas considerações e algumas prédicas precisam ser contestadas, quiçá aniquiladas do cotidiano do acompanhamento pedagógico. Convido então, o(a) amigo(a) leitor a pensar sobre elas. Até então, nos parece que existe uma tradição na rede estadual que versa que o monitoramento das escolas se travestia de uma atmosfera de vigilância, punição e burocratização das ações. Discutimos essas questões nas reuniões e pudemos colher as principais impressões a respeito da confirmação da presença desses hábitos. Vamos finalmente ao nosso desafio?

Mesmo sabendo que muito tem sido feito, precisamos implodir as sensações de vigilância e punição. Vejamos inclusive, que já por muito tempo, a educação brasileira chamava o ato de “visitar” escolas de monitoramento. O ato de monitorar, e o fato de que todo ele era acompanhado de um capital social e cultural muito forte, por parte do técnico da regional ou da SEDUC, produzia uma antipatia da equipe escolar. São ainda muito comuns os discursos como: Esse cara da secretaria só vem aqui exigir. A secretaria só pede as coisas. A equipe da SEDUC vem nos punir. Visto isso, é necessário dizer que a primeira grande intencionalidade do acompanhamento pedagógico é a criação de um laço de confiança fundada no profissionalismo. Isso equivale dizer que, rejeitando o papel de um algoz do cotidiano da escola, o elo pedagógico deve integrar-se às rotinas, observando as fraquezas do processo de gestão pedagógica auxiliando a superação desses percalços. Gosto demais de dizer que nossa tarefa é criar pontes e não muros.

Mesmo sabendo que muito tem sido feito, precisamos implodir a sensação de burocratização do acompanhamento pedagógico. Pensemos, outra vez, na imagem do elo pedagógico indo à escola, entregando uma ficha qualquer, aguardando que ela seja preenchida, tomando um último cafezinho e indo embora. Nem preciso dizer que aquela ficha produz, na verdade, um lapso de realidade, um corte de memória tremenda sobre as relações da escola. Não que os números não digam nada. Na verdade, dizem parcialmente, e são sempre importantes para que, de forma proto-cientifica, se possa planejar as políticas públicas em educação. Queremos dizer então, que, mesmo existindo uma parcela importante de colhida de dados de forma alguma eles serão a razão principal da execução do acompanhamento pedagógico.

E finalmente, onde queremos chegar? Precisamos compreender o acompanhamento como a criação de uma rotina de ação – orientação – ação nas escolas da rede. O elo pedagógico será o agente que, inserido no dia a dia da escola, poderá inferir sobre o desenvolvimento das práticas pedagógicas, contribuindo para que a escola se perceba com uma gestão mais racionalizada e produtiva. Nesse sentido, profissionalismo, e até mesmo o afeto, servirão para a criação de elos de confiabilidade essenciais ao impulso da nossa realidade escolar.

Antônio Daniel Marinho Ribeiro, Rapsodo dos Sertões.   

 

O OFÍCIO DE HISTORIADOR E A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA

 


            Sou professor de História, e com muito orgulho. Para onde vou e de que forma estou, profissionalmente, é sempre a primeira referência em uma apresentação. Desde o final dos anos 90, no curso de História da UFAL nos deparávamos com alguns assuntos chaves que definiam o ofício do professor de História. Talvez o principal desses assuntos era a regularização ou oficialização da profissão de Historiador, mesmo que estivéssemos em um curso de licenciatura. Pois bem... parte da solução para esta demanda foi realizada nas últimas semanas, quando o Plenário do Senado aprovou por unanimidade a regulamentação da profissão de historiador. O senador Randolfe Rodrigues da Rede – AP concordou com o Rapsodo dos Sertões afirmando que essa era a pauta mais esperada em décadas pelos profissionais da área – no final das contas o projeto segue para a sanção presidencial. Em outros momentos essa última ação seria resolvida de forma simples, já com Bolsonaro no poder as perspectivas finais, para a regularização da profissão de historiador ainda ficam sob suspeitas. Mas vamos tecer algumas considerações a respeito do ofício do historiador e da importância da História para a sociedade brasileira nesses tempos sombrios, ou como gostamos de chamar, os tempos da síntese.

Uma primeira consideração que gosto sempre de levantar, mesmo que ela já tenha sido rechaçada diversas vezes por outros profissionais que lidam com a escrita e/ou ensino de História é a da sua utilidade enquanto pensamento científico e campo do saber. Sempre retruquei essa dúvida com a resposta de que o passado é o elemento fundamental para significar os seres humanos e suas experiências sociais. A perspectiva é de que o acúmulo das experiências vividas pelos indivíduos e seus grupos constituem elemento ordinário e capilar para a definição de experiências e constituição de suas identidades. O passado é extremamente útil e desta forma, pois águas passadas movem moinhos!

Nesse sentido a sociedade brasileira é uma verdadeira caixa de pandora. Sempre ouvimos falar que o Brasil não possui memória, ou que passamos por uma amnésia social congênita. Desta feita, a impressão mais real que sinto é a de que, além disto – do fato de possivelmente não possuir memória, a sociedade brasileira é refém dos revisionismos historiográficos de caráter político. Até por que é inegável como professor perceber que o interesse pela História do Brasil e do Mundo tem se intensificado nos últimos anos. Tanto pelo advento da internet, quanto pela efervescência do mercado editorial das revistas de história, quanto pelo acaloramento dos debates políticos atuais encontramos boa parte da juventude minimamente interessada no debate público, que, por osmose traz a reboque o debate histórico. Como dito, o problema reside então, em algumas percepções revisionistas propositalmente deturpadas da História. Percepções essas que nos fazem enxergar verdadeiras anomalias nos discursos atuais como: jovens negros a favor no Nazismo, representantes do governo atual declarando a escravidão como um processo civilizatório benéfico aos negros brasileiros.... No final das contas esses discursos possuem algo em comum, que é a negação da legitimidade histórica dos movimentos sociais, e por consequência a sua criminalização. É uma nova/antiga História que pontua de forma contundente o conservadorismo como salvação para a ordem social.

Pensamos sempre em um estilo de explicação, que é aquele que pensa na multiplicidade dos fenômenos e das vivências humanas, ao mesmo tempo em que consegue categorizá-los e percebê-los em movimentos dialéticos de luta pela sobrevivência e espaços de poder e afirmação social. O que os movimentos conservadores revisionistas querem é negar a trajetória dialética dos conflitos que formaram o povo brasileiro. E isso é comum há tempos, ou não seria o mito da democracia racial uma espécie de tentativa de trazer uma antropologia dos afetos para a História do Brasil? Afirmando-nos como um povo fruto dos laços de negociação entre senhores e escravos onde a violência seria a artimanha final para manutenção do poder senhoril?

A História, enquanto ciência e campo do conhecimento, nos auxilia a pensar nos movimentos dialéticos que explicam, e co-definem a nossa realidade. O que queremos dizer é que, somente uma explicação de longa duração seria capaz de explicar as angústias do retorno feroz do conservadorismo, enquanto discurso histórico e prática política. A sociedade brasileira foi formada, em seu passado colonial pelas marcas e ranhuras do patriarcalismo, assentado nas monoculturas, no pacto colonial ou subserviência às potências estrangeiras e principalmente na escravidão e todo o bojo social, político e principalmente ideológico que ela sempre carregou. De Joaquim Nabuco a Jessé Souza, passando de forma categórica por Florestan Fernandes passamos a ter consciência de que uma ordem genealógica de construção do nosso ethos praticamente empedrou a perspectiva a respeito do Brasil. Dessa forma é inegável dizer que um modelo de nação foi construído, mesmo que isso batesse de frente com a multiplicidade étnica e racial do nosso país. Mesmo que tivéssemos religiosidades indígenas e negras foi o Cristianismo registrado como a religião da civilidade brasileira, apenas para pensarmos em exemplos práticos. O Capitalismo financeiro e especulativo como modelo de “desenvolvimento”, a família tradicional heteronormativa, enfim, o modelo europeu mesmo que compartilhado era-nos percebido como normativo. E desse movimento foram geradas diversas marginalidades, no sentido das identidades que historicamente foram segregadas em níveis e formas diferentes – esse é o primeiro grande dado da História para compreender o Brasil.

Em contrapartida e contradição a esse processo civilizatório homogeneizador observamos, principalmente no século XX, a quantidade considerável de movimentos sociais que o negaram. Seria a grande pauta de estudos do século XX e início do XXI. O movimento operário, feminista, negro, gay, campesino e tantos outros foram abrindo espaço, de formas variadas e com táticas variadas, para que chegássemos ao momento em que parte da sociedade pelo menos os considerasse legítimos. Temos, a partir daí a multivocalidade dos sujeitos que, de uma forma ou de outra tencionam nosso processo civilizador em nome de uma sociedade mais plural e inclusiva. Até certo ponto e até certo momento esse movimento de antítese parecia relativamente pacificado. A sensação que tinha era de que estávamos em um processo irreversível de aceitação, mesmo que lenta, desses movimentos sociais.

Estamos vivendo então os tempos em que esses movimentos sociais estão sendo postos a prova por uma contrarevolução – de valores, de percepções e de intenções políticas de conservação. O momento histórico em que o ódio pelas identidades marginalizadas e o espírito conservador do nosso processo civilizatório afloraram. Quem se sentia reprimido e envergonhado em sentir ódio dos movimentos sociais passou a se sentir livre por causa da catapulta inconsequente do conservadorismo. No final das contas, e puxando a sardinha para o nosso lado, somente a História, em sua perspectiva dialética é capaz de dar o mínimo de lucidez para o entendimento de uma realidade tão complexa, pois como dissemos – águas passadas movem moinhos.

Daniel Marinho é o Rapsodo dos Sertões!     

 

 

 

              

 

FALANDO EM DESIGUALDADES!

 

            Um assunto simples de se falar, naturalizando sua existência ou denunciando suas estruturas sociais – mas muito difícil se combater: Vamos falar em desigualdade social!

            Todos os meses de janeiro acontece o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). O encontro tem como objetivo discutir os principais direcionamentos do comércio internacional e as possibilidades para a saída de crises do sistema financeiro e organização da riqueza produzida pelas nações e empresas. É óbvio que nem todos os dinamismos dos sistemas econômicos mundiais são levados em consideração, principalmente por que o Fórum acontece em posicionamento as exigências mais contemporâneas, ou de interesse mais direto dessas nações. Desta feita o tema proposto por nós nesse texto, a desigualdade, não é, nem nunca foi lá alvo de grande preocupação do fórum.

            Em 2020 uma pesquisa foi lançada momentos antes do Fórum. Certa quantidade de sal foi posta na ferida. Ela relata que um pequeno grupo de pouco mais de duas mil pessoas possuem patrimônio maior que 1 bilhão de dólares. A detenção desta riqueza equivale ao total de riquezas de 60% da população mundial. Esse levantamento foi realizado pela Rede de organizações não governamentais - OXFAM. A concentração de renda é o vetor fundamental que indica a desigualdade no mundo – simples! Da pesquisa inclusive, podem ser retratados vários dados aterradores como: 22 homens possuem a riqueza de todas as mulheres da África. Ao término da questão a desigualdade gerada pela péssima distribuição de renda no mundo faz, hoje, com que bilhões de pessoas tenham que sobreviver com menos de 5,50 dólares por dia.

            Dos 82 países pesquisados, o Brasil ocupa a 60ª posição do ranking. Os esforços rendidos pelos vários fóruns alternativos a Davos não tem representado grandes consequências para a mudança dos cenários de desigualdade no Brasil e no Mundo. E por que?

1.        A desigualdade não pode ser encarada de forma singular, ela é plural. Mesmo que ela parta do grande motivo que é a péssima distribuição de renda, que emerge de privilégios inatingíveis para 99% da população, as causas são diversas. No Brasil, por exemplo podemos apontar a petrificação dos privilégios para a classe rentista que acumula bilhões de reais em lucros que, inclusive saem em grande medida da circulação de riquezas do país – empobrecendo inclusive a circulação de mercadorias e a prestação de serviços, enfraquecendo a economia.

2.      A desigualdade é naturalizada pela mídia, pelos costumes e pelo processo histórico da construção da civilização, tanto oriental quanto ocidental. Em maior ou menor medida, é impossível não vermos uma nação em que a classe dirigente não tenha construído uma narrativa histórica e quase mítica para apontar as razões seculares, consagradas e naturalizadas dos seus privilégios. As castas na Índia, a opressão de regimes ditatoriais de esquerda ou direita... O processo de naturalização da desigualdade, emergente do processo de escravidão no Brasil customiza a nossa desigualdade em um discurso racial e que imprime narrativas pejorativas de ódio aos pobres.

3.      A desigualdade é legitimada. Não foram incomuns historicamente as organizações de modelos políticos que estabelecessem privilégios, implicitamente ou não. De forma mais violenta ou não. O processo de legitimidade cria inclusive, e de forma eficaz, uma carapaça protetora a narrativa da desigualdade. Estar na lei seria estar, em certa medida, dentro da malha de privilégios que segregam. Não queremos dizer com isso que devemos viver em anarquia, mas precisamos sempre refletir que o sistema legislativo que prima pelas garantias de direitos, no nosso caso também protege grandes fortunas de uma maior tributação. Dentro da lei os bilionários conseguem se safar de até 30% do valor dos tributos que normalmente um cidadão comum deve aos cofres públicos, proporcionalmente.

4.      A desigualdade está e tem efetividade para todos, entretanto ela acontece de forma mais acentuada para as mulheres. Segundo a pesquisa 75% dos trabalhos realizados sem registro ou direitos são desempenhados por mulheres. Precisam, na maioria dos países em desenvolvimento, combinar os processos cotidianos do trabalho, dos cuidados com a família, da agricultura e etc., criando uma espécie de redemoinho que impede a articulação de um trabalho em que possam minimamente pensar em crescimento humano.

5.      A desigualdade é geográfica e produz uma divisão continental dos espaços na civilização. Os processos históricos que desencadearam na modernidade mostram que a desigualdade está posicionada na América (incluindo os EUA), Ásia e África abarcando mais da metade da população do planeta. O mais importante deste dado, é que ele evidencia que a questão da desigualdade seja pauta de interesse apenas para alguns grupos, não constituindo efetivamente um norte para a organização e implementação das políticas públicas no mundo.

 

Em meio a todas essas questões, o discurso liberal sintetiza, naturaliza e até mesmo sacraliza o discurso que dissocia a responsabilidade do sistema econômico, sendo a desigualdade um problema específico de organização dos governos. Ou não estamos vendo cada dia mais discursos que falam em menos direitos trabalhistas, mais tempo de trabalho e a reorganização da economia para desestatização do estado? Falaremos mais sobre essas associações!  

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