AS
BUZINAS TOCAVAM SEM CONSTRANGIMENTO!
APELO A
DITADURA E A FALTA DE APROFUNDAMENTO NO DEBATE POLÍTICO
Sou de uma geração de professores de História que, sim,
abertamente consideravam a ditadura militar uma anomalia análoga ao
desenvolvimento da civilidade dos povos. Sabíamos, de forma quase pacífica, que
essas ditaduras eram, inclusive, fruto dos próprios processos inerentes à
civilização, mesmo que fossem contra a civilidade. E eis que, em um processo
aparentemente rápido, uma parcela conservadora da extrema direita começou a
flertar com a opinião pública, ecoando vozes difusas que reivindicam o poder,
ou parte do poder. Em muitos setores da sociedade, inclusive nos assentos
governamentais, seus adeptos estão esfregando as mãos e babando para que o
caldo entorne. De onde vêm esses apelos? Seríamos capazes de tentar explicar
tal fenômeno, inclusive encaixando-o em um arsenal maior de histeria de massa
que comportaria outros fenômenos? Digo dessa forma, depois do tempo enquanto
professor de História, que testemunhou a existência contemporânea de grupos que
pedem a volta da ditadura militar, o cultivo de um poder centralizador, e até
mesmo a existência daqueles que estão dispostos a incensar a volta da
monarquia, com todos os seus penduricalhos estilísticos e toda sua liturgia oca.
Certamente qualquer explicação será uma tentativa aberta para vários
complementos e/ou refutações. Isso me faz ver que esse embate se trata de um
terreno minado, mas estou disposto a ouvir uns pipocos aqui e ali.
Uma
das imagens mais curiosas das últimas semanas (estamos no final de maio de
2018) foi passar pela principal avenida de Maceió (AL) e, após quartos de hora
mais impacientes do que de costume no trânsito, chegar em frente ao quartel e encontrar
um grupo acenando e solicitando apoio dos transeuntes à ideia do retorno a
ditadura militar. Pensei bem rápido, sem atentar rapidamente para a dimensão
daquele cenário. Tive a sensação de algo inédito: colocar a mão no queixo, de
forma idiota, e dizer, em voz mediana, que cheguei na idade de afirmar que
nunca tinha pensado em assistir a tal cena. De tão aterradora, a cena me tirou
a capacidade imediata de reflexão, entretanto, meio malcriado, baixei o vidro
do carro e resmunguei para o guarda de trânsito, que estava acenando ao caos,
que aquilo era uma loucura. Vi senhoras distintas e homens de qualquer classe
social, semelhantes a Adolf Eichmann, militar nazista analisado por Hannah
Arendt no clássico Eichmann em Jerusalém –
Um relato sobre a banalidade do Mal. Eles eram loucos? Monstros? Criaturas
bizarras no primeiro olhar? Não, categoricamente! Eram cidadãos comuns, certamente
cumpridores dos seus deveres, mas ansiosos por serem partícipes de uma nova
ordem, que consideravam melhor, mais justa e pacífica. Estavam, de forma
ordeira e cidadã, no aguardo de um messias que trouxesse a ordem ao caos e
estavam atentos para auxiliar que essa ordem se instale. O nosso messianismo
político, aguardando o mais selvagem dos “salvadores” de plantão – o militar.
Neste final de maio de 2018 mencionado, como a cereja do bolo de um tempo
conflituoso (são muitas cerejas, diga-se de passagem), observamos o desenrolar
da maior greve dos últimos tempos. A greve dos caminhoneiros abre escaras, pois
não se trata apenas da penalização de um único setor da sociedade. Indissociavelmente
as escaras estão abertas no fluxo da produção agrícola, no abastecimento das
cidades e principalmente na rotina de todo o país. Tocamos nesse assunto pelo
fato de estarmos vendo, de forma muito impactante, uma associação direta entre
o movimento conservador que suplica o retorno da ditadura militar e o seu
inconformismo com a situação de aparente desordem contra a ordem burguesa que
se instalou.
Como
é difícil lidar com situações que impõem mudanças rápidas e drásticas ao fluxo
natural (construído) do cotidiano! A miséria “permitida” de algumas classes que
nos faz acostumados a ver miseráveis não é mais chocante do que a ameaça de desabastecimento,
que afetaria a todos. Sem conseguir lidar e/ou explicar uma situação como essa
e explicar contextos sociais, políticos e econômicos novos não é para qualquer
um, algumas camadas da nossa população optam por tirar do baú do inconsciente
seus desejos políticos mais remotos. A visão de um poder centralizador, que
mantém a ordem com esmero e que ainda consegue manter classes e sujeitos
socialmente não desejados apartados da sociedade, de forma até viril, preenche
um imaginário ansiado de forma quase erótica, por parte da nossa população. E
hoje não encontramos esse desejo apenas na classe média mais abastada, que se
sente amargurada pela inserção das classes C e D em uma margem mínima de
consumo. Assim, jogando pedra no meu próprio telhado, já encontrei inclusive
colegas professores (de História) defendendo tal plataforma.
No momento em que passei pela
manifestação, irritado por ver inicialmente a minha rotina interrompida, me
lembrava que a defesa da ditadura – e suas prerrogativas coercitivas – configuram
um desrespeito à Constituição de 1988, o que configura um crime. Também se
tornou impossível não pensar qual seria a reação da maioria dos transeuntes e
apoiadores se aquela manifestação fosse de outra natureza ou classe social –
impossível não pensar: Pau que dá em Chico, não dá em Francisco. Quando digo
que sou relativamente pessimista, alguns dos meus amigos mais próximos não
acreditam, mas esse pessimismo (adicionado com mais duas porções de tristeza)
ficou um pouco maior, quando testemunhei que os manifestantes solicitavam que
os motoristas buzinassem, caso aprovassem a ideia proposta: E AS BUZINAS
TOCAVAM SEM CONSTRANGIMENTO!
Sei, de relance, que nossa
linha de pensamento está sempre antenada com as dinâmicas da educação de
Alagoas, e o caro amigo leitor pode me perguntar o que essa tentativa de
reflexão verificada acima tem de paralelo com a educação. E é claro que a
resposta é muito tola, pois mesmo passando por esse debate atualmente, e que
estejamos ainda tontos com propostas míopes de disciplina e coerção dos
procedimentos e discursos dos docentes em sala de aula, insisto: a democracia é
valor inalienável à construção e edificação de uma Escola Cidadã. E ainda mais
assertivo é dizer que a democracia, enquanto valor, não recai no jogo
discursivo simplório que ouvimos vez ou outra de que a própria democracia
permite a opinião a favor da ditadura e que isso deve ser respeitado. A opinião
defensora da ditadura não deve ser considerada, não deve ser posta em pauta, ou
posta apenas na dosagem semelhante à de uma vacina. O organismo deve conhecer,
em dose homeopática suficiente para não se deixar contaminar e se armar contra
a ameaça. A ditadura, como pior de todos os cenários políticos, consegue ser
capaz de, por sua natureza intransigente, confundir o espírito menos avisado a
respeito da organização e condução das decisões, difundir sem explicações as
desigualdades sociais, mascarar o desenvolvimento da nação, destituir e matar
os que não estão alinhados, usufruir da legalidade da máquina em seu proveito,
e de seus eleitos, tudo isso com a maquiagem protetora que embelezam as rusgas mais
profundas ou no brilho falso de estrelas bordadas em belos uniformes.
Cabe à Educação, regida por
seus princípios legais, mas principalmente pelo comprometimento ético da formação
de seus profissionais, salvaguardar a democracia como conceito, como processo
em construção coletiva, como exercício e como valor. Dessa forma, é muito
importante estar atento aos sinais desses tempos, para que não se saia
buzinando por aí!
Daniel Marinho, Rapsodo dos
Sertões.