sábado, 13 de março de 2021

A RELAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO COM AS MANIFESTAÇÕES POPULARES: UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE FORTALECIMENTO DAS MILÍCIAS (Lucas Martírio de Araújo)


 

Se quisermos entender a força das milícias no Brasil e principalmente no Rio de janeiro, precisamos compreender em alguma medida o papel fundamental da ditadura militar e da instrumentalização das manifestações populares nesse processo. Dos países latino-americanos que sofreram golpes militares no século XX, o Brasil está entre os que se mostraram incapazes de condenar os agentes do estado das forças armadas, quanto das forças policiais, pelos crimes cometidos contra a humanidade.

 Isso expressa o papel protagonista e dominante que o exército e as forças armadas foram acumulando desde o final do século XIX com a guerra do Paraguai, como também em Canudos, onde passou a ser uma instituição que participava ativamente da vida política brasileira e uma Instituição que se envolvia nos debates públicos da sociedade brasileira. No seu quadro de praças, por exemplo, as reivindicações abolicionistas e de cunho popular. Já nos postos de oficiais e alto escalão os traquejos e formulações de golpes e alianças com as oligarquias que permitisse a garantia de ambos privilégios, sendo a proclamação da república o resultado de um golpe articulado nessa direção.

 Os anos da ditadura militar no Brasil, tal como, marcaram um processo de aprofundamento das políticas econômicas capitalistas no ocidente, da subserviência aos EUA, da condescendência com o crime organizado paralelo ao estado e, claro, a participação da ditadura em todos os níveis de corrupção e do crime organizado. Na obra Os porões da contravenção (JUPIARA e OCTAVIO, 2015), por exemplo, se observa a participação ativa de chefes do exército, da polícia civil e de outros agentes durante a ditadura onde se utilizavam de seus lugares de poder para estabelecer suas relações com o contrabando, a contravenção, o suborno, a tortura e o extermínio, tudo a serviço dos grandes bicheiros e posteriormente ao tráfico de armas e drogas.

 É nessa direção e por dentro dos equipamentos do estado brasileiro que vão se estruturando as corporações do crime organizado, tendo um papel protagonista nas comunidades e favelas fluminenses. É também na ausência do papel do estado em muitas regiões que esses grupos vão se apropriando das demandas da população marginalizada e de suas tradições e expressões culturais como o futebol, as festas, a segurança, os bailes, o samba. Essas organizações criminosas paralelas ao estado foram aparelhando esses espaços e se imbricando nesses cotidianos.

O desenvolvimento das escolas de samba do Rio de Janeiro, por exemplo, está totalmente atrelado a relação com os bicheiros e em seguida com os milicianos que se formavam a partir desses relacionamentos e com a profissionalização do crime organizado. É o exemplo de Mocidade Independente de Padre Miguel com Castor de Andrade, da Portela de Carlinhos Maracanã, da Beija-Flor de Anísio Abraão, todos condenados por formação de quadrilha e que possuíam em sua retaguarda capangas militares ou ex-militares, entre eles suspeitos de assassinatos e sequestros.

No caso da Vila Isabel, tal como, foi presidida por um ex-capitão da ditadura militar acusado de tortura durante o regime, o Capitão Guimarães, ex DOI-CODI. Esses são os personagens que fortaleceram e fortalece a vida cultural de regiões historicamente abandonadas pelo estado, enriquecendo nas suas vidas privadas e construindo suas vidas públicas e de poder como uma espécie de herói local que fala a linguagem do povo, que defende e dirige algumas de suas reivindicações populares, que parece compreender o que o povo precisa e que além de garantir em alguma medida o direito ao seus costumes, contribuem para o sucesso da principal expressão popular brasileira, o carnaval. 

 Mas essas organizações não se restringem ao espaço político das favelas e periferias. Sua inserção se dá também desde os blocos carnavalescos das periferias, do controle das escolas de samba com a criação da liga independente, do controle de clubes de futebol menores como o Bangu e Madureira até chegar aos grandes times de futebol do Rio de Janeiro, como o caso do Botafogo de 1991 e 1992 presidido por Emil Pinheiro, condenado à época por formação de quadrilha. Ou, ainda, o Botafogo de 2002 que entregou a diretoria de futebol para o também condenado por formação de quadrilha Pacheco Drummond.

 Nesses passos essas organizações vão se transformando e se aperfeiçoando. Por um lado, adota em grande parte agentes órfãos da ditadura militar que vinham sendo deixados de lado com o fim do regime, passando também a integrar especialidades de caça, tortura e táticas militares aprendidas durante o período militar, para dentro das organizações do crime que vão dominando as regiões da cidade e do estado. Também compreendem a necessidade de se adaptar às mudanças com a constituição de 1988 e de continuar se envolvendo na política nacional. Movimento que se expressou no financiamento da campanha do alagoano Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto popular no pós-ditadura. Que tinha como principal bandeira de campanha a suposta caça aos marajás e corruptos.

É nessa dinâmica que as milícias e o crime organizado no Rio de Janeiro vão se perpetuando na política nacional e num movimento quase dialético se firma com o apoio popular, movimento que parece ser muito incompreendido por parte de teóricos e organizações políticas no Brasil, que numa ação quase repetitiva acaba englobando essas populações em categorias e caixinhas bem definidas e esquecendo, quase propositalmente, que as relações entre o povo e suas manifestações mobilizam afetos e carregam uma leva de outras questões.

A maneira, por exemplo, como a categorização das organizações criminosas é feita ainda parece muito pouco atenta às suas particularidades. Um dos erros é considerar estes grupos como grupos fascistas. Além do anacronismo há um erro de compreensão da sua formação, no sentido da coisa, essas organizações possuem respaldo popular, e seus líderes não conquistam esse respaldo através do ódio de classe, pelo debate moral ou pela ignorância.

Ao tempo que não apoiam ou financiam apenas políticos de direita, a exemplo da lista encontrada na casa do sobrinho do bicheiro Ailton Guimarães, o capitão Guimarães, com nomes de políticos que receberam dinheiro em 2001 e 2002, ente os nomes está o da ex-governadora Benedita da Silva, do maior partido de esquerda da América Latina que nasceu da luta democrática na década de 1980, o Partido dos Trabalhadores. Igualmente essas organizações financiam campanhas de partidos de esquerda, como exemplo novamente o PT, fora do estado do Rio de janeiro, tal qual o caso do condenado por formação de quadrilha, Carlinhos Cachoeira que foi flagrado em vídeo negociando sua ajuda ao prefeito de Palmas, Raul Filho, em 2012.

Mesmo compreendendo o carnaval como uma expressão política, aqui há de distingui-lo de uma ideia politiqueira tradicional. O respaldo das lideranças do crime parece ser muito mais obtido pelo campo das paixões, afetos e necessidades. São comunidades e favelas forjadas na dinâmica de um estado ausente e na presença cotidiana de poderes paralelos agindo por vezes coercitivamente ou não, com a ausência do debate político tradicional e das disputas ideológicas.

Em O corpo encantado das ruas, 2020, o historiador e professor Luiz Simas aborda as ruas como espaço de disputa política onde há das coisas mais sagradas: as trocas, os encontros e a construção de sujeitos históricos, o povo. O carnaval representado pelos blocos, escolas, bailes eram e continuam sendo maneiras de ocupar as ruas e “inventar a vida no precário”, é o dar a vida a quem está morrendo ou a quem tem quase nada. Nesse sentido o carnaval é movimento de sentir-se vivo, tão essencial como a água e o ar.

A relação do carnaval com o Rio de Janeiro nem sempre foi “amorosa” como ele cita, e naturalmente isto serve ao Brasil. Os poderosos e o estado brasileiro cansou de históricas incursões contra o carnaval e tudo que expressa heranças africanas, e nesse caminho muitas vezes os contraventores e criminosos foram aqueles que se aproximaram e se apropriaram dessas manifestações. Falar no povo fluminense, por exemplo, é falar, entre outras coisas, sobre o jogo do bicho e sobre o Samba e como eles se relacionam com os poderes.

  As milícias que se consolidam no Rio de Janeiro e no país a partir dos bicheiros, contraventores e criminosos fardados ou não, têm em particular algo muito comum: suas disputas pela conquista do poder e por sua manutenção não é sobre briga ou apoio político entre esquerda e direita, é sobre quem está disposto ou não a garantir sua perpetuação no tempo. Quem consegue legitimar esses poderes e quem consegue articular a congregação entre o crime organizado e o estado brasileiro, pois eles são inseparáveis.

Nesse sentido, suas articulações continuam e se desenvolvem. O assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, por exemplo, marca uma nova etapa do crime organizado no Rio e no Brasil. Ferrenha opositora à existência das milícias, ela foi rastreada e assassinada, bem ao modus, tática e estratégia militar, sua morte e impunidade que já passam dos mil dias simboliza que o crime organizado continua na ordem do dia. A morte de Marielle, uma política eleita pelo voto popular em pleno século XXI, pode ser a primeira evidência desse novo movimento das milícias e o seu grau de poder no país, uma outra evidência, inegavelmente, foram as eleições de 2018 que levaram as instâncias máximas do estado, políticos historicamente ligados as milicias, contraventores, agentes militares e civis que historicamente estiveram ligados ao submundo do crime, organizado ou não.

 

 

REFERÊNCIAS:

BETIM, Felipe.  “Lógica de usar torturadores da ditadura no crime foi usada nas milícias”. Jornal El País Brasil. São Paulo, 2019. Disponível em: <https://brasil-elpais-com.cdn.ampproject.org/v/s/brasil.elpais.com/brasil/2019/03/29/politica/1553885098_115676.html?amp_js_v=a6&amp_gsa=1&outputType=amp&usqp=mq331AQHKAFQArABIA%3D%3D#aoh=16134945249126&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&amp_tf=Fonte%3A%20%251%24s&ampshare=https%3A%2F%2Fbrasil.elpais.com%2Fbrasil%2F2019%2F03%2F29%2Fpolitica%2F1553885098_115676.html>. Acesso em: 18 fev. 2021.

DEMIER, Felipe. Milícia e fascismo: um breve comentário. Jornal Esquerda Online. 2018. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2018/12/16/milicia-e-fascismo-um-breve-comentario/> Acesso em: 18 fev. 2021.

JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Os Porões da Contravenção. Editora Record, 2015.

JUPIARA, Aloy; OTAVIO, Chico. Ex-capitão do bope promoveu aliança entre milicianos e bicheiros. Jornal Época. 2020. Disponível em: <https://epoca.globo.com/rio/ex-capitao-do-bope-promoveu-alianca-entre-milicianos-bicheiros-24275879 > Acesso em: 18 fev. 2021.

RANGEL, Sérgio. Bicheiro assume hoje futebol do Botafogo. Jornal Folha de São Paulo ESPORTE. São Paulo, 2002. Disponível em:  <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk2204200223.htm> Acesso em: 18 fev. 2021.

SÁ, Xico. Bicheiros não escolhem partidos. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 1994.  Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/17/brasil/33.html> Acesso em: 18 fev. 2021.

SIMAS, Luiz. O Corpo encantado das Ruas. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2020.

Políticos do Rio receberam dinheiro de bicheiros, diz PF. Jornal Congresso em Foco. [s.i.]. 2007. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/politicos-do-rio-receberam-dinheiro-de-bicheiros-diz-pf/> Acesso em: 16 fev. 2021.

Vídeo mostra prefeito de Palmas negociando com Cachoeira. Jornal G1. [s.i.]. 2012. Diponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/07/video-mostra-prefeito-de-palmas-negociando-com-cachoeira.html>  Acesso em: 13 mar. 2021.

Documentário: Doutor Castor. Produção: Globoplay; Direção: Marco Antônio Araújo. 2021. Rio de Janeiro: Globo Filmes. Acesso em fev. 2021.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário