Sou professor de História, e com
muito orgulho. Para onde vou e de que forma estou, profissionalmente, é sempre
a primeira referência em uma apresentação. Desde o final dos anos 90, no curso
de História da UFAL nos deparávamos com alguns assuntos chaves que definiam o
ofício do professor de História. Talvez o principal desses assuntos era a
regularização ou oficialização da profissão de Historiador, mesmo que
estivéssemos em um curso de licenciatura. Pois bem... parte da solução para
esta demanda foi realizada nas últimas semanas, quando o Plenário do Senado
aprovou por unanimidade a regulamentação da profissão de historiador. O senador
Randolfe Rodrigues da Rede – AP concordou com o Rapsodo dos Sertões afirmando
que essa era a pauta mais esperada em décadas pelos profissionais da área – no
final das contas o projeto segue para a sanção presidencial. Em outros momentos
essa última ação seria resolvida de forma simples, já com Bolsonaro no poder as
perspectivas finais, para a regularização da profissão de historiador ainda
ficam sob suspeitas. Mas vamos tecer algumas considerações a respeito do ofício
do historiador e da importância da História para a sociedade brasileira nesses
tempos sombrios, ou como gostamos de chamar, os tempos da síntese.
Uma
primeira consideração que gosto sempre de levantar, mesmo que ela já tenha sido
rechaçada diversas vezes por outros profissionais que lidam com a escrita e/ou
ensino de História é a da sua utilidade enquanto pensamento científico e campo
do saber. Sempre retruquei essa dúvida com a resposta de que o passado é o
elemento fundamental para significar os seres humanos e suas experiências
sociais. A perspectiva é de que o acúmulo das experiências vividas pelos
indivíduos e seus grupos constituem elemento ordinário e capilar para a
definição de experiências e constituição de suas identidades. O passado é
extremamente útil e desta forma, pois águas passadas movem moinhos!
Nesse
sentido a sociedade brasileira é uma verdadeira caixa de pandora. Sempre
ouvimos falar que o Brasil não possui memória, ou que passamos por uma amnésia
social congênita. Desta feita, a impressão mais real que sinto é a de que, além
disto – do fato de possivelmente não possuir memória, a sociedade brasileira é
refém dos revisionismos historiográficos de caráter político. Até por que é
inegável como professor perceber que o interesse pela História do Brasil e do
Mundo tem se intensificado nos últimos anos. Tanto pelo advento da internet,
quanto pela efervescência do mercado editorial das revistas de história, quanto
pelo acaloramento dos debates políticos atuais encontramos boa parte da
juventude minimamente interessada no debate público, que, por osmose traz a
reboque o debate histórico. Como dito, o problema reside então, em algumas
percepções revisionistas propositalmente deturpadas da História. Percepções
essas que nos fazem enxergar verdadeiras anomalias nos discursos atuais como:
jovens negros a favor no Nazismo, representantes do governo atual declarando a
escravidão como um processo civilizatório benéfico aos negros brasileiros....
No final das contas esses discursos possuem algo em comum, que é a negação da
legitimidade histórica dos movimentos sociais, e por consequência a sua
criminalização. É uma nova/antiga História que pontua de forma contundente o
conservadorismo como salvação para a ordem social.
Pensamos
sempre em um estilo de explicação, que é aquele que pensa na multiplicidade dos
fenômenos e das vivências humanas, ao mesmo tempo em que consegue
categorizá-los e percebê-los em movimentos dialéticos de luta pela
sobrevivência e espaços de poder e afirmação social. O que os movimentos
conservadores revisionistas querem é negar a trajetória dialética dos conflitos
que formaram o povo brasileiro. E isso é comum há tempos, ou não seria o mito
da democracia racial uma espécie de tentativa de trazer uma antropologia dos
afetos para a História do Brasil? Afirmando-nos como um povo fruto dos laços de
negociação entre senhores e escravos onde a violência seria a artimanha final
para manutenção do poder senhoril?
A
História, enquanto ciência e campo do conhecimento, nos auxilia a pensar nos
movimentos dialéticos que explicam, e co-definem a nossa realidade. O que
queremos dizer é que, somente uma explicação de longa duração seria capaz de
explicar as angústias do retorno feroz do conservadorismo, enquanto discurso
histórico e prática política. A sociedade brasileira foi formada, em seu
passado colonial pelas marcas e ranhuras do patriarcalismo, assentado nas
monoculturas, no pacto colonial ou subserviência às potências estrangeiras e
principalmente na escravidão e todo o bojo social, político e principalmente
ideológico que ela sempre carregou. De Joaquim Nabuco a Jessé Souza, passando
de forma categórica por Florestan Fernandes passamos a ter consciência de que
uma ordem genealógica de construção do nosso ethos praticamente empedrou a
perspectiva a respeito do Brasil. Dessa forma é inegável dizer que um modelo de
nação foi construído, mesmo que isso batesse de frente com a multiplicidade
étnica e racial do nosso país. Mesmo que tivéssemos religiosidades indígenas e
negras foi o Cristianismo registrado como a religião da civilidade brasileira,
apenas para pensarmos em exemplos práticos. O Capitalismo financeiro e
especulativo como modelo de “desenvolvimento”, a família tradicional
heteronormativa, enfim, o modelo europeu mesmo que compartilhado era-nos
percebido como normativo. E desse movimento foram geradas diversas
marginalidades, no sentido das identidades que historicamente foram segregadas
em níveis e formas diferentes – esse é o primeiro grande dado da História para
compreender o Brasil.
Em
contrapartida e contradição a esse processo civilizatório homogeneizador
observamos, principalmente no século XX, a quantidade considerável de
movimentos sociais que o negaram. Seria a grande pauta de estudos do século XX
e início do XXI. O movimento operário, feminista, negro, gay, campesino e
tantos outros foram abrindo espaço, de formas variadas e com táticas variadas,
para que chegássemos ao momento em que parte da sociedade pelo menos os
considerasse legítimos. Temos, a partir daí a multivocalidade dos sujeitos que,
de uma forma ou de outra tencionam nosso processo civilizador em nome de uma
sociedade mais plural e inclusiva. Até certo ponto e até certo momento esse
movimento de antítese parecia relativamente pacificado. A sensação que tinha
era de que estávamos em um processo irreversível de aceitação, mesmo que lenta,
desses movimentos sociais.
Estamos
vivendo então os tempos em que esses movimentos sociais estão sendo postos a
prova por uma contrarevolução – de valores, de percepções e de intenções
políticas de conservação. O momento histórico em que o ódio pelas identidades
marginalizadas e o espírito conservador do nosso processo civilizatório
afloraram. Quem se sentia reprimido e envergonhado em sentir ódio dos
movimentos sociais passou a se sentir livre por causa da catapulta
inconsequente do conservadorismo. No final das contas, e puxando a sardinha
para o nosso lado, somente a História, em sua perspectiva dialética é capaz de
dar o mínimo de lucidez para o entendimento de uma realidade tão complexa, pois
como dissemos – águas passadas movem moinhos.
Daniel
Marinho é o Rapsodo dos Sertões!
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