Estamos
em Alagoas, completando um mês de quarentena. Mesmo que no final das contas
tenha a real impressão de que ela não está acontecendo a contento. Quando fui
comprar remédios testemunhei engarrafamento na avenida Fernandes Lima. Pois
bem... sigamos... Raul Seixas, profeta e músico baiano cantarolou durante certo
tempo uma canção óbvia para os tempos que estamos vivendo, ela diz no refrão:
... o dia em que a terra parou! ... o dia em que a terra parou! E nas estrofes
ele cita abundantemente os exemplos das atividades sociais que parariam.
Ladrões e policiais, estudantes e professores, médicos e pacientes e etc.. A
lição catastrófica e distópica da letra nos alerta para uma questão óbvia de
que vivemos em laços de interdependência que são extremamente frágeis. A nossa
sociabilidade é frágil... e mesmo que tenhamos aprendido isso na escola, sempre
vimos essa exemplificação em realidades distantes do passado em que não
vivemos, e perfeitamente, pouco aprendemos com elas. Guerras mundiais e civis,
exploração, inundações, terremotos, violência desmedida e etc.
No
final das contas um elemento invisível tem a potencialidade de nos desarticular
enquanto sociedade afetando sobremaneira o ritmo das nossas vidas e a
disposição do nosso cotidiano. E importante também dizer que a pandemia de corona
vírus é a primeira catástrofe dessa dimensão e característica que essa geração
está enfrentando – podemos citar algo semelhante em escala mundial que já
tenhamos vivido? Mesmo que não nos seja tão óbvio, sim, já vivemos algumas
epidemias a nível continental e mundial – da AIDS a dengue, entretanto nenhuma
tomou em pouco tempo a proporção que esse momento tem demonstrado. E observemos
que só estamos no começo, e ninguém sabe ao certo qual será o saldo ou os
despojos. Como exemplo das proporções da pandemia ficamos com a fala da chanceler
alemã Ângela Merkel que disse que o momento atual se assemelha, em desafio, a
IIª Guerra Mundial.
O
mundo está entrando em colapso? A pergunta pode parecer impertinente e até
mesmo deslocada, já que junto a essa áurea estranha de quarentena somasse todo
o clima de histeria coletiva em que o real sentido do problema ou é
superestimado ou subestimado. E por certo tempo o Rapsodo estava se esquivando
em escrever um texto sobre o tema, mas enfim, estamos aqui. A alta capacidade
de contágio, a porcentagem considerável de letalidade e a falta de um
tratamento e curas adequados fazem com que pensemos em outros momentos e
experiências históricas. E não precisamos ir tão longe, para as epidemias
medievais da peste negra, por exemplo – mas ao grande surto de gripe espanhola
no começo do século XX.
“A
História repete-se sempre, pelo menos duas vezes” (Hegel). E Marx o
acrescentando completou que “a primeira vez como tragédia, a segunda como
farsa”. Pois sim que, a gripe espanhola, em seu início, também foi tratada no
Brasil como uma “gripezinha” de onde é que esse termo tenha vindo, ou a quem
conclame. Tal como hoje, a gripe espanhola ganhou um adjetivo pátrio, mesmo que
o vírus em si, não reconhecesse fronteiras nem muito menos nacionalidades.
Primeiro indício de farsa: dar nacionalidade ao vírus é permear o discurso de
culpa para determinado povo. Alguns levantamentos descrevem que, como tragédia
a gripe espanhola chegou a matar 20 milhões de pessoas já outros somam o total
de 50 milhões – em todos os casos foi subtraída uma porcentagem significativa
da população do mundo na época.
Em
setembro de 1918 aportou no Recife o navio cargueiro S.S Demerara, da Companhia
Royal Mail Britain, vindo de Liverpool e passado por Lisboa. As notícias dão
que a tripulação e o computo dos passageiros a bordo estavam quase todos
contaminados com a gripe espanhola – daí a contaminar boa parte da cidade do
Recife foi muito breve. E mesmo sem ter tido nenhum tipo de averiguação mais
competente das autoridades sanitárias o Demerara saiu do Recife em direção ao
Rio de Janeiro. No início de outubro de 1918 já eram mais de 50 infectados no
Rio de Janeiro – a epidemia já estava instalada. E já no dia 10 do mesmo mês,
dias depois, já eram contabilizados 400 doentes. A tragédia começava, mas
sempre acompanhada de uma farsa, pois dias depois, o Diretor Geral de Saúde
Carlos Seidl reuniu a imprensa e em declaração alardeada proclamou a farsa de
que a gripe era benigna – que era a forma de dizer que se tratava de uma
gripezinha na época. Só faltou realmente dizer que possuía um histórico de
atleta, não temos essa parte do pronunciamento. E mais, nos jornais diários do
Rio de Janeiro dos dias seguintes enfatizou que tudo não se tratava de
sensacionalismo histérico da imprensa. Deste ponto em diante seguiram-se os
ataques mútuos entre imprensa e governo. Ao ponto de Seidl solicitar ao
presidente da República Venceslau Brás a censura total da imprensa quanto ao
assunto. Mas desde já, nessa época a Globo? Deixa para lá... sigamos.
No
Rio de Janeiro houve inclusive a necessidade de se adaptar locais públicos em
hospitais, inclusive o estádio do Vasco da Gama – São Januário. Nesta fase e na
urgência sanitária desses locais Carlos Chagas chegou a assumir o combate da
epidemia – seria a rendição do negacionismo politiqueiro da época a urgência
dos métodos científicos? Pois a tragédia já estava instalada. Sigamos! Em
várias capitais do país o problema se assemelhava ao Rio de Janeiro inclusive
com relatos de abandono de doentes e mortos e a necessidade da construção de
cemitérios para abarcar tantos defuntos. Em Maceió a situação foi semelhante –
que diga o cemitério de São José, que, diga-se de passagem, não está mais
comportando nem mesmo a demanda atual. A tragédia contabilizou no Brasil, por
alto, 40 mil pessoas.
Por
outro lado, a farsa crescia como rastilho de pólvora. Parece-nos que, em toda
crise os abutres se fartam. Surgia nos jornais de várias cidades brasileiras um
elixir aqui, uma garapa ali, um tônico acolá até quem sabe uma cloroquina como
bálsamo que apaziguasse os anseios da população em busca de uma cura fácil e
rápida contra a gripe. Falava-se inclusive da necessidade de se tomar sol na
praia como forma de se imunizar do vírus, além de cachaça com limão ou uísque
com gengibre, canja de galinha bem forte – “bons tempos”. Entretanto não temos
notícias se Venceslau Brás à época apresentou algum tipo de cloro... já
hoje... Nos EUA o remédio da hora era o
quinino, e quando a notícia se espalhou pelo Brasil houve uma corrida
desenfreada e inflacionada ao remédio – que na verdade nenhum efeito cientificamente
comprovado repercutiu.
O
contágio e os efeitos da gripe espanhola no Brasil duraram até o ano seguinte,
e entre as vítimas contabilizadas estava o então reeleito presidente da
República, o Sr. Rodrigues Alves, acometido pela influenza espanhola veio a
falecer em janeiro de 1919. Não vamos mais falar em coincidências... Mas o
certo é que, de forma ampla e como sociedade, não aprendemos muita coisa com a
História.
Daniel
Marinho é o Rapsodo dos Sertões e teve o apoio da leitura do artigo
“Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro” da
autora Adriana da Costa Goulart
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