sexta-feira, 12 de março de 2021

CORONAVÍRUS E A HISTÓRIA COMO FARSA E TRAGÉDIA

 

Estamos em Alagoas, completando um mês de quarentena. Mesmo que no final das contas tenha a real impressão de que ela não está acontecendo a contento. Quando fui comprar remédios testemunhei engarrafamento na avenida Fernandes Lima. Pois bem... sigamos... Raul Seixas, profeta e músico baiano cantarolou durante certo tempo uma canção óbvia para os tempos que estamos vivendo, ela diz no refrão: ... o dia em que a terra parou! ... o dia em que a terra parou! E nas estrofes ele cita abundantemente os exemplos das atividades sociais que parariam. Ladrões e policiais, estudantes e professores, médicos e pacientes e etc.. A lição catastrófica e distópica da letra nos alerta para uma questão óbvia de que vivemos em laços de interdependência que são extremamente frágeis. A nossa sociabilidade é frágil... e mesmo que tenhamos aprendido isso na escola, sempre vimos essa exemplificação em realidades distantes do passado em que não vivemos, e perfeitamente, pouco aprendemos com elas. Guerras mundiais e civis, exploração, inundações, terremotos, violência desmedida e etc.

No final das contas um elemento invisível tem a potencialidade de nos desarticular enquanto sociedade afetando sobremaneira o ritmo das nossas vidas e a disposição do nosso cotidiano. E importante também dizer que a pandemia de corona vírus é a primeira catástrofe dessa dimensão e característica que essa geração está enfrentando – podemos citar algo semelhante em escala mundial que já tenhamos vivido? Mesmo que não nos seja tão óbvio, sim, já vivemos algumas epidemias a nível continental e mundial – da AIDS a dengue, entretanto nenhuma tomou em pouco tempo a proporção que esse momento tem demonstrado. E observemos que só estamos no começo, e ninguém sabe ao certo qual será o saldo ou os despojos. Como exemplo das proporções da pandemia ficamos com a fala da chanceler alemã Ângela Merkel que disse que o momento atual se assemelha, em desafio, a IIª Guerra Mundial. 

O mundo está entrando em colapso? A pergunta pode parecer impertinente e até mesmo deslocada, já que junto a essa áurea estranha de quarentena somasse todo o clima de histeria coletiva em que o real sentido do problema ou é superestimado ou subestimado. E por certo tempo o Rapsodo estava se esquivando em escrever um texto sobre o tema, mas enfim, estamos aqui. A alta capacidade de contágio, a porcentagem considerável de letalidade e a falta de um tratamento e curas adequados fazem com que pensemos em outros momentos e experiências históricas. E não precisamos ir tão longe, para as epidemias medievais da peste negra, por exemplo – mas ao grande surto de gripe espanhola no começo do século XX.

“A História repete-se sempre, pelo menos duas vezes” (Hegel). E Marx o acrescentando completou que “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Pois sim que, a gripe espanhola, em seu início, também foi tratada no Brasil como uma “gripezinha” de onde é que esse termo tenha vindo, ou a quem conclame. Tal como hoje, a gripe espanhola ganhou um adjetivo pátrio, mesmo que o vírus em si, não reconhecesse fronteiras nem muito menos nacionalidades. Primeiro indício de farsa: dar nacionalidade ao vírus é permear o discurso de culpa para determinado povo. Alguns levantamentos descrevem que, como tragédia a gripe espanhola chegou a matar 20 milhões de pessoas já outros somam o total de 50 milhões – em todos os casos foi subtraída uma porcentagem significativa da população do mundo na época.

Em setembro de 1918 aportou no Recife o navio cargueiro S.S Demerara, da Companhia Royal Mail Britain, vindo de Liverpool e passado por Lisboa. As notícias dão que a tripulação e o computo dos passageiros a bordo estavam quase todos contaminados com a gripe espanhola – daí a contaminar boa parte da cidade do Recife foi muito breve. E mesmo sem ter tido nenhum tipo de averiguação mais competente das autoridades sanitárias o Demerara saiu do Recife em direção ao Rio de Janeiro. No início de outubro de 1918 já eram mais de 50 infectados no Rio de Janeiro – a epidemia já estava instalada. E já no dia 10 do mesmo mês, dias depois, já eram contabilizados 400 doentes. A tragédia começava, mas sempre acompanhada de uma farsa, pois dias depois, o Diretor Geral de Saúde Carlos Seidl reuniu a imprensa e em declaração alardeada proclamou a farsa de que a gripe era benigna – que era a forma de dizer que se tratava de uma gripezinha na época. Só faltou realmente dizer que possuía um histórico de atleta, não temos essa parte do pronunciamento. E mais, nos jornais diários do Rio de Janeiro dos dias seguintes enfatizou que tudo não se tratava de sensacionalismo histérico da imprensa. Deste ponto em diante seguiram-se os ataques mútuos entre imprensa e governo. Ao ponto de Seidl solicitar ao presidente da República Venceslau Brás a censura total da imprensa quanto ao assunto. Mas desde já, nessa época a Globo? Deixa para lá... sigamos.

No Rio de Janeiro houve inclusive a necessidade de se adaptar locais públicos em hospitais, inclusive o estádio do Vasco da Gama – São Januário. Nesta fase e na urgência sanitária desses locais Carlos Chagas chegou a assumir o combate da epidemia – seria a rendição do negacionismo politiqueiro da época a urgência dos métodos científicos? Pois a tragédia já estava instalada. Sigamos! Em várias capitais do país o problema se assemelhava ao Rio de Janeiro inclusive com relatos de abandono de doentes e mortos e a necessidade da construção de cemitérios para abarcar tantos defuntos. Em Maceió a situação foi semelhante – que diga o cemitério de São José, que, diga-se de passagem, não está mais comportando nem mesmo a demanda atual. A tragédia contabilizou no Brasil, por alto, 40 mil pessoas.

Por outro lado, a farsa crescia como rastilho de pólvora. Parece-nos que, em toda crise os abutres se fartam. Surgia nos jornais de várias cidades brasileiras um elixir aqui, uma garapa ali, um tônico acolá até quem sabe uma cloroquina como bálsamo que apaziguasse os anseios da população em busca de uma cura fácil e rápida contra a gripe. Falava-se inclusive da necessidade de se tomar sol na praia como forma de se imunizar do vírus, além de cachaça com limão ou uísque com gengibre, canja de galinha bem forte – “bons tempos”. Entretanto não temos notícias se Venceslau Brás à época apresentou algum tipo de cloro... já hoje...  Nos EUA o remédio da hora era o quinino, e quando a notícia se espalhou pelo Brasil houve uma corrida desenfreada e inflacionada ao remédio – que na verdade nenhum efeito cientificamente comprovado repercutiu.

O contágio e os efeitos da gripe espanhola no Brasil duraram até o ano seguinte, e entre as vítimas contabilizadas estava o então reeleito presidente da República, o Sr. Rodrigues Alves, acometido pela influenza espanhola veio a falecer em janeiro de 1919. Não vamos mais falar em coincidências... Mas o certo é que, de forma ampla e como sociedade, não aprendemos muita coisa com a História.

Daniel Marinho é o Rapsodo dos Sertões e teve o apoio da leitura do artigo “Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro” da autora Adriana da Costa Goulart      

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